24 dezembro 2008

O Rei está Nu




Recentemente assisti uma entrevista no Conexão Roberto D’Avila com o poeta, escritor Affonso Romano de Sant’Anna. Gosto do Affonso porque ele tem noção do que fala, e principalmente do que escreve. Nessa referida entrevista ela se concentrou naquela que eu acho a sua mais interessante faceta: a de ensaísta com ênfase em Arte. Interessantíssimo as conclusões dele sobre a Arte Contemporânea, ou seja de uma arte em crise de identidade. Opinião que vem muito a calhar com as minhas próprias.


Há alguns anos me interesso por essa discussão acerca da História da Arte, e muitas vezes meu caro amigo Insano e eu debatemos sobre a validade ou os conceitos que definem o que é Arte. Oras, sempre fui daqueles (assim como Affonso) que acham Duchamp uma fraude das mais toscas do século XX. Como creditar a ele a alcunha de artista ou aventar a sua importância no que concerne a arte conceitual, quando na realidade ele é nada além de um monólito da falta de expressividade artística?! É absurdo cair no axioma falacioso da anti-arte, do tudo pode ser um objeto artístico. Infelizmente é sob esse paradigma que vivemos (vide os absurdos em matéria de ‘instalações’ que povoam as bienais pelo mundo), decadentismo puro...


Até acho instigante pensarmos em algumas das propostas que nos faz este tipo de ‘artista’, por em xeque a validade de uma obra de arte, as questões estéticas que a norteiam são sem dúvida uma problemática recorrente para aqueles que pensam ou se sentem atraídos por debates da história do pensamento. Enfim, uma discussão mais filosófica e sociológica do que artística, digamos de forma simplista. Portanto, vamos “desconstruir Duchamp” e mostrar por A mais B se necessário for que “o Rei está nu”.


Entrevista do Affonso Romano de Sant'Anna concedida ao G1: http://colunas.g1.com.br/maquinadeescrever/2008/10/15/entrevista-affonso-romano-de-santanna/


Jessye Norman

Nesta véspera de Natal nada com ouvir uma bela interpretação...


04 dezembro 2008

Tempos


Tempo. É chegado o tempo de viver, me dizem. É chegado o tempo de morrer, eu digo a mim mesmo. Mas o Tempo é inexorável e pouco conciliador sabemos. Na verdade, cruel em suas artimanhas não permite que vivamos e nem mesmo deixamos de viver. Seja essência, ouve-se o nobilíssimo Ser murmurar, quase inaudível, embora sempre presente... Freqüência é o determinante. Freqüente a vida hoje, freqüentará a morte amanhã. E o não existir? Quando lhe será dado o tempo de ser. Nunca. Enfático e embrutecido assevera o pai da deterioração. Não haverá um tempo da não-existência, como não existirá o tempo onde o Tempo seja apenas mais um tempo. Aos nobres de linhagem, de origens inquestionáveis como o é o Tempo, nada será retirado. Neste âmbito não houve revolução burguesa. Trata-se aqui de uma aristocracia absoluta – sanguinária, inescrupulosa e demasiadamente vã, tanto quanto as daqueles que se diziam portentosos de sangue azul. No entanto, é uma elite inquestionável. E digno de pena aquele que tentar se rebelar contra tão fortes laços feudais... Seja vassalo do Senhor seu Tempo. Dele é a sua existência. É ele o seu Juiz Inquisidor. Será ele, por fim, a te embalar nos tempos vindouros.

03 dezembro 2008

"Pois a maldade se pratica sem testemunhas, mas a prática da bondade as exige. O catolicismo, por exemplo: o sacramento da confissão é secreto, mas a virtude cristã da caridade necessita de palco – oculto sob o nome do bom exemplo. O hábito católico do outdoor das boas ações se transporta para os programas de auditório: as lágrimas fluem melhor em horário nobre. O futuro será fecundo para todos esses atores do afeto triste, pois, alegrem-se, mais catástrofes virão. Que o diga o aquecimento global. Os pandas ainda terão chance de se condoer muitas e muitas vezes. Bom para eles – e para nós, que apreciamos o teatro do grotesco. Ruim para os pobres, claro, que continuarão morando em áreas de risco – tudo para nossa diversão, óbvio, pois, afinal de contas, quem se importa de verdade com os pobres? Eu que não. Arrisco dizer que ninguém."

A Lontra Niilista (Tadeu Sarmento)

O Ser e o Nada


Estávamos a sós naquela imensa cama com dossel herdada de meus avós maternos, desproporcional ao pequeno e mal ventilado apartamento. Distraidamente observava os parcos móveis espalhados aleatoriamente. Depositados na espessa camada de poeira que encobria o piso, os meus velhos livros.
Ainda sonolenta levantei-me e caminhei até a pilha de livros a procura do surrado exemplar do Ser e o Nada. (Sartre é o único autor que consegue me retirar do poço fundo que é a lassidão do amanhecer). Após alguns minutos de minuciosa investigação, encontrei-o e retornei para a cama. Abri o livro e comecei a lê-lo sussurrando cada palavra como se fossem receitas mágicas, mantras, orações, ou qualquer coisa do tipo que nos leva a pretensa transcendência, ao êxtase. Ao meu lado, ainda dormindo tranqüilo, ele respirou profundamente. Interrompi a leitura, olhei-o com amor perscrutando cada centímetro daquele corpo que há algumas horas parecia estar em perfeita sintonia com o meu... Fechei o livro. Beijei aqueles olhos que, eu sabia, só desejavam a mim, mas que agora não viam nada além da densa escuridão das pálpebras que os enceravam. Levantei-me, e felinamente caminhei até a cozinha. Abri a gaveta do armário, e retirei a imensa faca que raramente era utilizada. Acariciei-a como quem acaricia o falo do homem desejado. Sentindo-me invadida pelo prazer e pelo medo voltei à cama, e sem nenhuma hesitação desferi naquele torso musculoso um único e profundo golpe. Ele nem acordou. Um único sinal de espasmo perceptível: as pernas se agitaram violentamente. Feliz pelo meu feito e sentindo-me saciada, joguei aquele simulacro de consciência no chão, peguei o Sartre e recomecei a ler, convicta de ser o humano mais incrível do mundo... Eu deixara de simplesmente existir para incomensuravelmente ser.

O sol já estava alto quando acabei o livro, retirei a colcha da cama e acobertei o corpo que insistia em dormir. Insistia em me ignorar... Olhando para o relógio digital de mostrador vermelho, certifiquei-me que já estava quase na hora de sair. Tomei um banho rápido, troquei de roupa e corri até a cozinha onde peguei uma maçã. Retornei ao quarto e despedi-me com um longo beijo no meu inerte namorado. Apanhei a bolsa e sai para a faculdade com a certeza de que desta vez quando eu retornasse a noite o meu homem estaria me esperando ansiosamente para podermos jantar.

Tranquei a porta e lancei-me escada abaixo com o augúrio de que perderia a primeira aula do dia: Semiótica.

24 novembro 2008

Seja marginal, oras!

Acordei cedo hoje. Detesto acordar de manhã, ainda mais quando não durmo bem. Mas ossos do ofício, os trabalhos da faculdade me obrigam a estes sacrifícios... Bom, mas não estou aqui para escrever sobre as minhas idiossincrasias, e fazer deste blog um diário do meu cotidiano. A função aqui é apenas, ou seja, somente escrever aquilo que me parece realmente essencial, o que não pode ser 'guardado'... Enfim, quimeras e nada mais...

Agora que justifiquei – a mim mesmo, é claro, pois egoisticamente (?) me importo pouquíssimo com a opinião dos outros –, posso dar vazão ao que vim fazer hoje: por que, marginal se tornou sinônimo de delinqüente? Questão prosaica, vulgar, mas que causa uma efervescência intelectual. Estaria nos anos de Ditadura Militar a raiz de tal equivoco sócio-cultural, ou será mais antigo e remonte os preconceitos típicos da humanidade, sendo, portanto, intrínseco às pessoas. Não sei realmente a resposta para esse questionamento, embora creia que tanto seja algo comum ao ser humano, como no Brasil talvez tenha sido catalisado pelos anos ditatoriais. Enfim, teorias absurdas de uma mente repleta de cafeína (risos)!
Mas viva a Marginalia, àqueles que nadam contra as avassaladoras correntes do status quo, dos ritos sociais, da mesmice, e por que não basbaquice imperante! Salve os loucos, (aliás, tenho me interessado cada vez mais pelo mundo da Dr. Nise da Silveira. Assim que formular ou racionalizar alguma coisa suscitada por ela, escrevo aqui.). Aos sabiamente e providos de bom senso transgressores a minha sincera-adimirável-gratidão.

23 novembro 2008

Oroboros...


Naquela manhã vivemos.
Não, foi ao entardecer... Ou melhor, foi ao amanhecer.
O Viver arde.
Viver é aquecer, ascender infindos abismos de um negrume acéfalo.
Viver é debruçar-se ao tecer
da laboriosa tapeçaria imposta pelo morrer.


Naquela noite morremos.
Não, foi ao entardecer... Ou melhor, foi ao anoitecer.
A Morte arde.
Morrer é umedecer, descer infindos abismos de uma brancura asséptica.
Morrer é cessar-se de tecer
a laboriosa tapeçaria imposta pelo viver.
J.C.

09 novembro 2008

O que é Comunicação?

Na torre de Babel


(Wislawa Szymborska)


Na torre de Babel— Que horas são? — Sim, estou feliz
e só me falta um guizo no pescoço
para enquanto tu dormes ele retinir sobre ti.— Não ouviste então a tempestade? O vento assolou as muralhas,
a torre urrou como um leão pelo portão
a ranger nas dobradiças. — Como é que podes não te lembrar?
Eu trazia um vestido cinzento muito simples
de abotoar nos ombros. — E logo a seguir
o céu explodiu em mil clarões. — Como é que eu podia entrar
se tu não estavas sozinho! — E vi de súbitoas cores de antes de haver olhar. — É pena
que não possas perdoar-me. — Tens toda a razão,
foi um sonho de certeza. — Por que é que mentes?
Por que me tratas pelo nome dela?
Amá-la ainda? — Sim! Queria muitoque ficasses comigo. — Não estou triste,
eu devia ter adivinhado.
— Ainda pensar nele? — Não estou a chorar!
— E é tudo? — De ninguém como de ti.
— Pelo menos és sincera. — Fica tranquilo,
vou-me embora da cidade. — Fica tranquilo,
eu vou-me embora daqui. — Tens umas mãos tão bonitas.
— É uma velha história. Foi duro
mas passou sem deixar mossas. — Não tem de quê,
meu caro, não tem de quê. — Não sei
que horas são e nem quero saber.



25 outubro 2008

Caso encerrado!

Faz tanto tempo que não passo por este espaço que até já tinha esquecido de sua existência. Existência... É possível afirmar que isto aqui existe, quando me questiono indubitavelmente se EU existo? Bom, mas a minha existência independe do Quimeras, no entanto a dele depende integralmente da minha! Oh vida, como é insuportável está idéia de dependência, ou melhor, de refém existencial. Acho chatíssimo qualquer discurso romântico, ou pseudo-romântico que seja do tipo: "Dependo dela para viver" ou "sem ela a minha vida não seria a mesma" e etc. Chato para não dizer idiota. A isso não se pode denominar por amor, paixão e sim patologia, doença mesmo. É impossível construir uma casa com apenas uma coluna de sustentação, li uma vez. Conselho um tanto quanto óbvio esse, embora totalmente aplicável ao campo irracional das relações amorosas. Não se pode viver com apenas um amor, o ideal seria distribuí-lo, dividi-lo em miríades de colunas. Assim, quando uma se quebrar – e isso acontecerá, com certeza –, sua moradia não correrá o risco de desabar instantaneamente, pois as outras incontáveis colunas a sustentarão... Ridículo, não? Nem creio que me sujeitei a escrever esse tipo de coisa, mas a situação me obriga a ser simplista...

Bem, será que alguém adinha o que me motivou a escrever aquela teoria a la Augusto Cury ? O Caso Eloá, é claro! Não suporto mais nada relativo a este assunto. Basta deste espetáculo circense, para os raios o tal do Lindenberg ( Por Neitzsche! Tem gente que não tem noção alguma para nomear os próprios filhos...), e para as cucuias a neo-celebridade Nayara, exemplo de amizade tal qual Damon e Pítias. Com este post faço catarse de todas as enxurradas mídiaticas e ‘análises’ obrigatórias sobre ética que fiz durante a última semana. Pronto, agora estou a apto a esquecer este que será, em breve, apenas mais um caso como os milhares que acontecem por todo o país!

24 julho 2008

Comédia Dell'Arte

Não suporto filas, principalmente quando se está cercado por pessoas que só conversam banalidades desnecessárias, fofocas e coisas do tipo. Mas nesta semana fui surpreendido pelo teor do diálogo travado entre duas senhoras, certamente bem mais que sexagenárias. Reproduzo aqui o trecho que achei mais intrigante. Será isto uma espécie de Comédia Dell’Arte?

Senhora 1: A Dercy Gonçalves morreu. Você viu?
Senhora 2: Ué, pensei que ela já tivesse morrido faiz tempo...
Senhora 1: Nada. Ela só morreu agora... Foi o que passou na televisão...
Senhora 2: Ahn ta, se passou na televisão é porque é verdade. Coitada, quantos anos mesmo?
Senhora 1: Mais de 100...
Senhora 2: Então tava passando da hora de morrer...

23 julho 2008

A Vida: En Rose end Black



Voltei a ouvir Billie Holiday, diária e ritualisticamente. Isso é um fato. Menos factuais são as emoções despertadas, ou catalisadas pela voz de “Lady Day”... É inexplicável, ou fora do parâmetro tentar descrever os pensamentos suscitados quando a ouço interpretar Strange Fruit ou Lady Sings the Blues. Tristeza. Billie juntamente com Edith Piaf são, talvez, as duas maiores interpretes da tristeza em sua forma mais sublime, artística. Engraçado como a vida dessas duas senhoras do canto se assemelham em vários aspectos: ambas nasceram no mesmo ano, 1915 (eu só me dei conta disso ao assistir o filme “Piaf – Um Hino ao Amor”, em determinada cena Piaf se diz fã de Billie e comenta o fato de terem nascido no mesmo ano!); tiveram uma infância pobre e em famílias desestruturadas; começaram a ser reconhecidas e prestigiadas como cantoras nos anos de 1930; se tornaram dependentes do álcool e outros tipos de drogas; morreram prematuramente – Billie Holiday em 1959 e Edith Piaf em 1963.
São tantas as analogias na trajetória de Billie e Piaf que só consigo encontrar uma possível explicação na teoria da Sicronicidade de Jung. Enfim, de qualquer forma elas foram inegavelmente grandes artistas, souberam viver a vida com todos os prazeres intrínsecos aos desprazeres que lhes foram ofertados. Cantaram e, além disso, interpretaram de forma única e apaixonada. Isso sim é um fato...

15 junho 2008

Felinos, Mulheres e Homens Despencam Igualmente



Era um hábito dele caminhar todos os dias de manhã. Aparentemente sem destino. Levado apenas por suas pernas, gostava de ressaltar àqueles que notavam essa sua idiossincrasia. Durante esses momentos de “flaner” podia se concentrar na efusão de pensamentos que abundavam a sua mente caótica. Não que caminhar resolvesse as grandes questões que o afligiam, no entanto deixava-o menos irritadiço durante o restante do dia, - em especial no seu emprego de meio período que não lhe cansava a mente, pois a única obrigação era a de servir e preparar fast-foods. Função pouco honrosa, mas que lhe que rendia o suficiente para cobrir as despesas mais imediatas. Por enquanto esta vida era-lhe o bastante, pensava sentado à escrivaninha enquanto olhava pela janela do pequeno e pobre apartamento, que só lhe revelava a paisagem de outros pequenos e pobres apartamentos.
Creio ser necessário abrir um parentêse para explicar que a nossa personagem era, de fato, alguém pouco "convencional", digamos assim. Desde que resolvera sair da casa dos pais, impelido pelo sonho de ser reconhecido como escritor, morava naquele cubículo. E todos os dias independentemente da situação climática, como foi dado a entender no inicío desta narração, acordava e após o rápido café da manhã, que por sinal só tinha café, caminhava ruminativo movido pelas idéias da noite anterior para um possível romance, novela, conto, ensaio. Enfim, algo que pudesse escrever. Transformar em signos as abstrações fantásticas é o que tentava fazer, não com muito sucesso é verdade, mas tentava.
Contudo voltemos ao apartamento de nosso escritor anônimo, ele ainda não sabe, entretanto nesta mesma noite ocorrerá algo magistral que mudará a sua vida. Provavelmente não será a mudança que ele ansiosamente espera e almeja – embora eu não possa afirmar indubitavelmente isso. Em suma, lá estava ele sentado em sua escrivaninha murmurando uma velha canção popular, esperando, ou melhor, perscrutando cada canto de seu cérebro em busca de um tema para escrever. Como de hábito, ritualisticamente à sua frente apenas uma arrogante folha de papel vagabundo, mais amarelo do que branco, os olhos perdidos nas paredes descascadas e mofadas dos apartamentos vizinhos, com suas incontáveis janelas e vitrôs basculantes que denunciavam a existência de banheiros insalubres. E foi justamente nesse momento que algo de inusitado aconteceu, muito rapidamente, mas os olhos de nosso escritor anônimo, ou anômalo se preferir, capturaram o fato em toda a sua parcialidade – uma vez que as partes formam um todo, e um todo é a soma das partes, quantas partes são possíveis para se formar um todo? Quantos olhares são necessários para compor uma imagem em sua totalidade? –, em toda a sua dramaticidade ele assistiu entorpecido a isto: de uma das inúmeras janelas dos incontáveis apartamentos que faziam vista a ele, um gato grande e preto saltou ou fora atirado pela janela. Logo em seguida, separados por questão de segundos uma mulher também caia vertiginosamente da mesma janela que o felino, e tal qual este, não estava explícito se saltara ou se arremessaram-na – fator que, aliás, não vem ao caso neste momento – no abismo formado por apartamentos populares. Apesar da tragédia humana e, porque não, animal que se seguia, aquela imagem tinha em si uma carga poética imensa. Era lindo o movimento corporal de ambos os seres durante a queda, o pêlo e o vestido que se moviam freneticamente ao sabor da corrente de ar... Bela coreografia, digna de Bejart cicio o jovem escritor ao observar o resultado de tal balé: dois cadáveres repousando lado a lado, duas massas disformes estendidas na calçada e uma crescente aglomeração de transeuntes.
Após assistir esse poético-dançante-morrer, um fluxo ininterrupto de boas idéias começou a fluir em sua mente em tão grandes proporções e criatividade que em pouco tempo havia escrito um roteiro que certamente seria o embrião de uma grande obra de arte. Concomitante ao seu estado de êxtase produtivo, os corpos ainda se encontravam no lugar em que caíram, com a diferença de agora haver um número muito maior de curiosos, veículos de imprensa e da polícia, logicamente. Nosso escritor trabalhou a noite toda, e de manhã pela primeira vez desde que morava ali não saiu para caminhar, apenas escreveu. Assim como a tarde, pois também faltou ao trabalho para dar forma às suas quimeras. Portanto, durante quase vinte e quatro horas com apenas curtos intervalos para as necessidades de ordem biológicas, e cerca de trezentas páginas escritas à mão depois, ele deu por terminado a sua “grande obra literária”. Estava exausto psique e fisicamente, com muito sono e dores lancinantes nas costas, e mesmo neste estado deplorável se sentia feliz por ter conseguido conceber algo com estilo próprio. Já via o seu nome ao lado dos grandes escritores aclamados universalmente que tanto admirava... Delirava com as manchetes: “O Proust brasileiro”, “Uma obra digna de Joyce”, “Nasce um clássico”... Dormiu, e os sonhos vieram claros, intimidantemente claros, sonhos com mulheres e gatos que despencavam no nada absoluto, nas trevas... E eles gritavam desesperados, na tentativa vã de se segurar em um apoio que não existia... E ele assistia aquilo sem poder reagir, sem conseguir ajudá-los, a única coisa que fazia era escrever, escrever mecanicamente, descrevendo cada grito, miado, o desespero nos olhos amarelos do gato, as lágrimas que abundavam no rosto da mulher...
Acordou no outro dia – no horário que comunalmente despertava – não se sentindo muito bem, a noite habitada de gatos e mulheres permanecia em sua memória, em um relance olhou para a escrivaninha e se certificou que o manuscrito estava lá. Não o pegou, levantou-se e saiu para a sua caminhada matinal. Logo à rua ouviu o burburinho dos que ainda comentavam o ocorrido. Assim descobriu que o gato era um persa e a mulher se chamava Rachel, e que a polícia ainda investigava à procura de explicações para o mistério que cercava as mortes do animal e dona.
Continuou a caminhar, “o dia será belo hoje”, pensou com um sorriso de esperança. Neste dia suas pernas o levaram a lugares nunca antes percorridos, caminhou por ruas estranhas, passou por muitas casas, jardins, cães, gatos e mulheres... Voltou para casa e sentou-se à escrivaninha para encarar a sua obra. Ainda não havia escrito um título, então olhou para fora, para o mesmo local que o inspirara e com uma grafia hesitante escreveu: “Felinos e Mulheres Despencam Igualmente”. Levantou-se para tomar um café e decidiu procurar um editor o quanto breve...
Nesta mesma noite um outro corpo despencou. Como já haviam despencado o do gato persa e de sua dona Rachel, o corpo de nosso jovem escritor também despencara... Caiu belo, como quem desliza ao som de um velho samba canção. Lá embaixo na calçada as pessoas se reuniram mais uma vez, a mídia ligou os seus refletores e a polícia encobriu o inerte corpo com um cinematográfico saco preto. Em algum apartamento popular por ali, com suas incontáveis janelas e vitrôs basculantes alguém ouvia... “E o rio de asfalto e gente/ Entorna pelas ladeiras/ Entope o meio-fio/ Esquina mais de um milhão/ Quero ver então a gente, gente/ Gente, gente, gente, gente, gente...”

13 junho 2008

"(...) Nós... nós batíamos as pálpebras. Chamava-se a isso piscar. Um pequeno relâmpago negro, uma cortina que cai e se ergue: deu-se a interrupção. Os olhos se umedecem, o mundo se aniquila. Não pode imaginar como era refrescante! Quatro mil repousos por hora. Quatro mil pequenas evasões. Quatro mil, digo eu... Como é? Então, vou viver sem pálpebras? Não se faça de bobo. Sem pálpebras, sem sono, é a mesma coisa. Nunca mais hei de dormir... Como poderei me tolerar? Trate de responder, faça um esforço! Tenho um caráter implicante, como vê, e tenho o costume de implicar comigo mesmo. Mas... mas, não posso estar implicando sem parar. Por lá, havia as noites. Eu dormia. Tinha o sono leve. Em compensação, sonhava coisas simples. Havia uma campina. Uma campina, nada mais. Eu sonhava que estava passeando por ela. É de dia?" (Garcin em "Entre Quatro Paredes", de J.P. Sartre)

"Aquele que luta contra os monstros deve vigiar para não se tornar um deles. Ora, quando o teu olhar se fixa por muito tempo no fundo de um abismo, o próprio abismo penetra em ti. " (Nietzsche, Além do Bem e do Mal)

10 junho 2008

Duerme, duerme negrito

Desde muito pequeno ouço as pessoas dizerem frente a qualquer imprevisto “negativo”: “Quando se fecha uma porta, Deus abre uma janela”... Oras, penso eu: se Deus é Deus por que em uma situação inesperada com essa Ele ao invés de abrir a janela, não arromba a porta? Não sei... Aliás, Deus é uma figura que me persegue, mesmo não cogitando a possibilidade de Sua existência. O fato é que para mim quando se fecha uma porta, fecham-se, consequentemente, as janelas e cerram-se as cortinas. Só posso, deste modo, conceber esse dito popular perante o meu pessimismo que invariavelmente me exige a mais salutar escuridão... Desespero? Às vezes. Angústia? Sempre. Mas eis que de algum lugar surge à voz uterina e pungente de Mercedes Sosa a me acalantar, com o seu tambor me hipnotiza e me faz segui-la tal qual o flautista mágico daquele velho conto de fadas... e... e... “Duerme, duerme negrito... Que tu mama está em el campo, negrito”... E me vejo novamente amparado pelas fraternas figuras com quem convivo. Sendo assim, não preciso de Deus para abrir coisa alguma, pois tenho seres humanos, aliás, demasiadamente humanos a me auxiliar a encontrar as chaves ideais para escancarar as portas!

09 junho 2008

Eu Transeunte

Eu caminhante, nós caminhantes
Pelas ruas, calçadas, becos
Passo

Sem destino, objetivo, finalidade
Meta
Passo

Por árvores vigilantes, postes abstratos
Cães abandonados, humanos vadios que ladram.
Não paro, sempre
Passo

Breves acenos de mãos que mal se conhecem
Que não se reconhecem.
Nada disso importa os meus eus passam

Por sinfonias de automóveis, pardais, sabiás
(o quê me importam, nem sei distingui-los)
Caminho vagarosa física inconsciente intelectualmente
Mente?
Se avançar é antônimo de recuar
Na prática não são tão diferentes.
Passo

Sob os orbes em suas eternas coreografias elípticas,
Sobre os paralelepípedos irregulares das ruas antigas
Pelas estações, pela ausência de estações.
Passo
E os outros passam,
Imateriais, irreais,
Por mim, por eles.

07 junho 2008

A Psique de um Esquisito

Ele era algo assim como que esquisito. Estranho ao outrem e a si mesmo, à margem, sempre a margem... Talvez escolhera ser um corpo estranho, ou não. Ao certo mesmo ainda não sabia, como, aliás, não sabia de nada que fosse realmente prático. A vida não lhe parecia algo prático, funcional, normal. Vida implica fantasia, imaginação, teoria... Enfim, tudo o que ele sempre fez foi teorizar o viver, complexificar o óbvio.
Bom, mas o nosso registro não entrará nessas questões gerais sobre essa ‘estranha’ personagem. Este relato pretende sim, dar voz a mente, permitir, por a sim dizer, que os pensamentos do “Esquisito” tenham vazão por cerca de uma hora, período no qual a nossa cobaia psicológica fica exposta ao convívio com a turba, confinada em um insalubre meio de transporte que a conduz aos seus estudos até a cidade vizinha. Algo importante: pior do que o convívio com a gentalha, é a trilha sonora imposta pelo condutor do referido veiculo.
Passemos agora à psique do “Esquisito” ou Jean como comunalmente é chamado e reconhecido. Não nos cabe a censura ou edição desta pequena amostra de delírios, portanto eles serão transcritos aqui ‘brutos’, descontextualizados; em suma tal qual foram pensados. Recomendação: não procurem um sentido lógico, essa é a uma das características que o Esquisito, ou melhor, Jean não possui.

“Que desgraça, mal entro nesta porcaria e já tenho que cumprimentar essa idiota... Nunca entendi o motivo pelo qual ela ri tanto... Até parece apresentadora de programa infantil... Esse sorriso deve esconder alguma coisa! Que loucura eu fiz... Tem um lugar vago lá atrás... Acho que vou me sentar aqui mesmo, só espero que não tenha que dividir o banco com nenhuma anta, ou animal semelhante... Puta, o ônibus está cheio... Hum... não é possível que ela se sentará aqui... Sentou! Pronto agora pra piorar já começou a música 'campesina' de péssima qualidade... Ainda vou torturar esse motorista... Há-ha legal! A bateria do mp3 está ótima... Hoje pelo menos não vou ouvir o lixo externo... Será que essa senhora não percebeu que não estou a fim de conversa? Que estou sorrindo só por pura hi-po-cri-sia, que quando abro um livro significa que quero LÊ-LO... Não suporto gente imbecil!... ‘Moça prêta do Curuzu / Beleza Pura! / Federação/ Beleza Pura! / Bôca do rio/ Beleza Pura! / Dinheiro não!... ’ legal essa letra do Caetano... pena que a Globo a descontextualizou... Não tem nada a ver com a abertura daquela novelinha... Realmente as aulas de Comunicação Comparada e toda essa teoria de ‘como o contexto altera o sentido do enunciado’ têm sido muito legais... Campêlo e eu precisamos ir ao Sinuca, faz tempo que não bebemos e discutimos o vazio existencial... Precisamos também fazer uma reunião de pautas para o Guardanapo... Essa ‘Generala’ realmente é muito ‘excêntrica’... Muito bom esse livro do Velho Dostô... Tenho que perguntar para o Flávio sobre as referências do ‘Idiota’ no ‘Sacrifício’... Aliás, ele me disse que o Ciro ainda não viu o filme, mas pretende assistí-lo... Tenho que aproveitar e indicar ao nosso caro Jovem Werther, mais uma vez, ‘Querelle’. Ele certamente ficará escandalizado com o teor sexual dos diálogos... Há-há... Ignomínias... Não posso me esquecer... Até que essa menina que entrou este ano é gostosa, que curso será que ela está fazendo... Han... Pelo jeito é burra... afff... Preciso ser menos chato... Pra quê?! Estou condenado à solidão... É bem melhor assim... Mas se eu me basear em Sartre, esse estar condenado seria um equívoco... A não ser que fosse à liberdade... Para os existencialistas nós somos o que escolhemos ser, sendo assim eu não estou condenado à solidão e sim, a escolhi... Preciso reler ‘O existencialismo é um Humanismo’... Preciso reler tanta coisa... E falta ainda ler tanta coisa... Como será a imortalidade? Peter Pan e Drácula na essência são a mesma coisa... Ambos são obcecados pela não morte... Morte... Eu quero morrer, sim, e num futuro não tão distante... ‘Todos os Homens são Mortais’... Bom, eu acho... Nossa que música é essa?! Ah... É da Dee alguma coisa... Voz boa, afinada, potente... Canta muito mesmo... Huhuhuh... Puta que pariu!!! Tenho que baixar mais músicas dela... Jazz sempre me lembra a ‘Indústria Cultural’, ‘Sociedade de Massa’, Escola de Frankfurt e a ‘reprodução da obra de arte e a conseqüente perda de sua aura’... Nossa quanta coisa! Ufa... Como são interessantes as cores após a chuva... É, não saberia viver longe destas serras... Essa minha ‘mineiridade’... Quem disse isso mesmo? Minha memória está cada dia pior... Putz! Quem era... Acho que estou com um pré-Alzheimer... Ah! Guimarães Rosa... ‘ Ouça-me bem amor/ Preste atenção, o mundo é um moinho/ Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos/ Vai reduzir as ilusões à pó. ’... Estou com sono hoje... E ainda tem aula da Havainas de Saltinho... Ha-ha... A Carol é doida mesmo... Preciso dormir mais...
Será que já chegamos?... Nossa dormi mais do que pensava... Hum... Esse odor que emana da Granja... É nojento!... E o sertanejão continua a todo... Quanta idiotice... Merda... será que a burra não desconfia que está me atrapalhando?! ... Isso, sai mesmo do meu caminho... É, até mais tarde... Para o meu desespero... Menos um dia!”


Como poderá ser compreendido após a leitura da reprodução dessa verborragia mental, a nossa cobaia sofre de um tipo raro de patologia psicologica, uma espécie de esquizofrenia aguda neurótica com propensões a pseudo-intelectualidade. Caso ele não seja tratado imediatamente teremos mais um suicida as soltas. Portanto, recomendamos que tipinhos esquizitos assim, em particular esse espécime que nos serviu de cobaia ingira diarimente doses regulares de Prozac, Rivotril, ou coisa que os valha. Somente medicado, alguém com tamanha idiossincrasia não oferecerá risco a sociedade e as demais pessoas que trabalham e se esforçam por uma existência mais produtiva sócio-economicamente. Também sugerimos que aqueles que tiveram os seus nomes ‘pensados’ pela cobaia (Campêlo, Flávio, Ciro e Carol) sejam ‘investigados’, inclusive esse tal de “Velho Dostô” que suspeitamos ser o pseudônimo de algum corruptor de jovens mentes.


Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com a vida real não terá sido mera coincidência…

06 junho 2008

Quimeras e Café

Era uma vez... Porra! Não era uma vez coisa nenhuma. Esta minha maldita mania de querer fantasiar, quando na verdade não há fantasia. Eu pelo menos não creio... Talvez um dia tenha crido, mas não mais. Nunca mais. Eu sou um realista, ou será naturalista? Tanto faz, ambas são apenas denominações para mesma merda que é viver...
Tenho certeza que você – é você mesmo, o idiota que leu o primeiro parágrafo –, deve estar a pensar: Oras de onde surgiu este louco que ousa escrever estas ignomínias como se fossem poemas líricos?! (Viu como conheço o gênero humano? Assim que comecei a traçar essas linhas previ a sua dúvida e, portanto, também escolhi a minha resposta). Caríssimo, escrevo, ou melhor, ejaculo essas frases com a única intenção de fecundar alguma mente-útero. Lógico que se você me considera um vil, é melhor não continuar a leitura, o que será um favor a mim e a você... Mas caso esteja interessado a ficar prenhe de dúvidas, de questões metafísicas, de se tornar um louco, por favor, prossiga e desde já fico grato por permitir-me constituir a minha prole.
Confesso-lhe – a você que ousou prosseguir – que não sou nenhum exímio narrador, aliás, perto dos grandes escritores não passo de um analfabeto funcional. E muito menos um Filósofo, ah! Poucas coisas são tão cruéis quanto o oficio proporcionado pela filosofia. Pensar: sinônimo de sofrer. Mas mesmo não sendo nem um Dostoievski, nem um Nietzsche gosto de questionar a “existência”, e acima de tudo sinto prazer em analisar as idiossincrasias da turba: Como os ignóbeis se comportam, as facilidades com as quais eles conseguem se posicionar sócio-economicamente, todas estas variantes do referido gênero... Um amargurado, infeliz que não se realizou profissionalmente, ou na vida pessoal. À primeira vista talvez me enquadre nesta categoria, mas insisto em afirmar que quebrados os primeiros preconceitos óbvios eu sou muito mais do que aparento. É fato que não tenho o devido reconhecimento profissional, e que minha vida pessoal e social são dignas de um leproso... Mas mesmo assim, enfatizo, o meu desgosto pela massa não deriva destas – não conscientemente – características de minha personalidade e sim de outras.
Sou um misantropo. Sempre o fui, desde as minhas primeiras lembranças... Paradoxalmente a isso, sou um humanista. Pasmem! Pois este é o meu único amor, a humanidade. Estranho, não? Sim, com certeza. Porém, como todo amor o meu também tem algo de patológico, obsessivo... Ah! Mentira! Desconsidere o que escrevi. Eu não os amo, muito pelo contrário o que nutro pela Humanidade é ódio... Profundo, tão denso quanto a mais densa treva...
Durante anos a fio me debrucei sobre os livros, mergulhei profundamente e poucas vezes sai ileso dos grandes cérebros nos quais resolvi me aventurar em busca dos subsídios para curar – sim, eu tentei uma salvação... – ou acabar de envenenar este medíocre organismo, “a mais perfeita máquina da natureza”! Nada além de quimera. Como deve estar latente, não encontrei o antídoto ou a poção que me curaria. Mas encontrei e me embriaguei dos mais nobres venenos, e todos, tinham em suas formulas a certeza da vilania humana, da sua sordidez e finitude... A certeza da minha vilania, da minha condição sórdida e finita!
Não estou me sentindo bem... Não realizei o que propus a você, leitor, no início deste monstro que esta a me devorar sadicamente. Não disseminei o germe da dúvida, não cumpri com a minha palavra, o iludi com falsas promessas... Mas que se foda! Procure por si só, questione. Saia da sua zona de conforto, da completa alienação... Mas siga um conselho: se você ainda quiser tentar ser feliz, continue a consumir o ópio que lhe ofertam gratuitamente. Eu fico por aqui, preciso me recompor... Preciso de uma boa dose de café.