03 dezembro 2008

O Ser e o Nada


Estávamos a sós naquela imensa cama com dossel herdada de meus avós maternos, desproporcional ao pequeno e mal ventilado apartamento. Distraidamente observava os parcos móveis espalhados aleatoriamente. Depositados na espessa camada de poeira que encobria o piso, os meus velhos livros.
Ainda sonolenta levantei-me e caminhei até a pilha de livros a procura do surrado exemplar do Ser e o Nada. (Sartre é o único autor que consegue me retirar do poço fundo que é a lassidão do amanhecer). Após alguns minutos de minuciosa investigação, encontrei-o e retornei para a cama. Abri o livro e comecei a lê-lo sussurrando cada palavra como se fossem receitas mágicas, mantras, orações, ou qualquer coisa do tipo que nos leva a pretensa transcendência, ao êxtase. Ao meu lado, ainda dormindo tranqüilo, ele respirou profundamente. Interrompi a leitura, olhei-o com amor perscrutando cada centímetro daquele corpo que há algumas horas parecia estar em perfeita sintonia com o meu... Fechei o livro. Beijei aqueles olhos que, eu sabia, só desejavam a mim, mas que agora não viam nada além da densa escuridão das pálpebras que os enceravam. Levantei-me, e felinamente caminhei até a cozinha. Abri a gaveta do armário, e retirei a imensa faca que raramente era utilizada. Acariciei-a como quem acaricia o falo do homem desejado. Sentindo-me invadida pelo prazer e pelo medo voltei à cama, e sem nenhuma hesitação desferi naquele torso musculoso um único e profundo golpe. Ele nem acordou. Um único sinal de espasmo perceptível: as pernas se agitaram violentamente. Feliz pelo meu feito e sentindo-me saciada, joguei aquele simulacro de consciência no chão, peguei o Sartre e recomecei a ler, convicta de ser o humano mais incrível do mundo... Eu deixara de simplesmente existir para incomensuravelmente ser.

O sol já estava alto quando acabei o livro, retirei a colcha da cama e acobertei o corpo que insistia em dormir. Insistia em me ignorar... Olhando para o relógio digital de mostrador vermelho, certifiquei-me que já estava quase na hora de sair. Tomei um banho rápido, troquei de roupa e corri até a cozinha onde peguei uma maçã. Retornei ao quarto e despedi-me com um longo beijo no meu inerte namorado. Apanhei a bolsa e sai para a faculdade com a certeza de que desta vez quando eu retornasse a noite o meu homem estaria me esperando ansiosamente para podermos jantar.

Tranquei a porta e lancei-me escada abaixo com o augúrio de que perderia a primeira aula do dia: Semiótica.

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