15 junho 2008

Felinos, Mulheres e Homens Despencam Igualmente



Era um hábito dele caminhar todos os dias de manhã. Aparentemente sem destino. Levado apenas por suas pernas, gostava de ressaltar àqueles que notavam essa sua idiossincrasia. Durante esses momentos de “flaner” podia se concentrar na efusão de pensamentos que abundavam a sua mente caótica. Não que caminhar resolvesse as grandes questões que o afligiam, no entanto deixava-o menos irritadiço durante o restante do dia, - em especial no seu emprego de meio período que não lhe cansava a mente, pois a única obrigação era a de servir e preparar fast-foods. Função pouco honrosa, mas que lhe que rendia o suficiente para cobrir as despesas mais imediatas. Por enquanto esta vida era-lhe o bastante, pensava sentado à escrivaninha enquanto olhava pela janela do pequeno e pobre apartamento, que só lhe revelava a paisagem de outros pequenos e pobres apartamentos.
Creio ser necessário abrir um parentêse para explicar que a nossa personagem era, de fato, alguém pouco "convencional", digamos assim. Desde que resolvera sair da casa dos pais, impelido pelo sonho de ser reconhecido como escritor, morava naquele cubículo. E todos os dias independentemente da situação climática, como foi dado a entender no inicío desta narração, acordava e após o rápido café da manhã, que por sinal só tinha café, caminhava ruminativo movido pelas idéias da noite anterior para um possível romance, novela, conto, ensaio. Enfim, algo que pudesse escrever. Transformar em signos as abstrações fantásticas é o que tentava fazer, não com muito sucesso é verdade, mas tentava.
Contudo voltemos ao apartamento de nosso escritor anônimo, ele ainda não sabe, entretanto nesta mesma noite ocorrerá algo magistral que mudará a sua vida. Provavelmente não será a mudança que ele ansiosamente espera e almeja – embora eu não possa afirmar indubitavelmente isso. Em suma, lá estava ele sentado em sua escrivaninha murmurando uma velha canção popular, esperando, ou melhor, perscrutando cada canto de seu cérebro em busca de um tema para escrever. Como de hábito, ritualisticamente à sua frente apenas uma arrogante folha de papel vagabundo, mais amarelo do que branco, os olhos perdidos nas paredes descascadas e mofadas dos apartamentos vizinhos, com suas incontáveis janelas e vitrôs basculantes que denunciavam a existência de banheiros insalubres. E foi justamente nesse momento que algo de inusitado aconteceu, muito rapidamente, mas os olhos de nosso escritor anônimo, ou anômalo se preferir, capturaram o fato em toda a sua parcialidade – uma vez que as partes formam um todo, e um todo é a soma das partes, quantas partes são possíveis para se formar um todo? Quantos olhares são necessários para compor uma imagem em sua totalidade? –, em toda a sua dramaticidade ele assistiu entorpecido a isto: de uma das inúmeras janelas dos incontáveis apartamentos que faziam vista a ele, um gato grande e preto saltou ou fora atirado pela janela. Logo em seguida, separados por questão de segundos uma mulher também caia vertiginosamente da mesma janela que o felino, e tal qual este, não estava explícito se saltara ou se arremessaram-na – fator que, aliás, não vem ao caso neste momento – no abismo formado por apartamentos populares. Apesar da tragédia humana e, porque não, animal que se seguia, aquela imagem tinha em si uma carga poética imensa. Era lindo o movimento corporal de ambos os seres durante a queda, o pêlo e o vestido que se moviam freneticamente ao sabor da corrente de ar... Bela coreografia, digna de Bejart cicio o jovem escritor ao observar o resultado de tal balé: dois cadáveres repousando lado a lado, duas massas disformes estendidas na calçada e uma crescente aglomeração de transeuntes.
Após assistir esse poético-dançante-morrer, um fluxo ininterrupto de boas idéias começou a fluir em sua mente em tão grandes proporções e criatividade que em pouco tempo havia escrito um roteiro que certamente seria o embrião de uma grande obra de arte. Concomitante ao seu estado de êxtase produtivo, os corpos ainda se encontravam no lugar em que caíram, com a diferença de agora haver um número muito maior de curiosos, veículos de imprensa e da polícia, logicamente. Nosso escritor trabalhou a noite toda, e de manhã pela primeira vez desde que morava ali não saiu para caminhar, apenas escreveu. Assim como a tarde, pois também faltou ao trabalho para dar forma às suas quimeras. Portanto, durante quase vinte e quatro horas com apenas curtos intervalos para as necessidades de ordem biológicas, e cerca de trezentas páginas escritas à mão depois, ele deu por terminado a sua “grande obra literária”. Estava exausto psique e fisicamente, com muito sono e dores lancinantes nas costas, e mesmo neste estado deplorável se sentia feliz por ter conseguido conceber algo com estilo próprio. Já via o seu nome ao lado dos grandes escritores aclamados universalmente que tanto admirava... Delirava com as manchetes: “O Proust brasileiro”, “Uma obra digna de Joyce”, “Nasce um clássico”... Dormiu, e os sonhos vieram claros, intimidantemente claros, sonhos com mulheres e gatos que despencavam no nada absoluto, nas trevas... E eles gritavam desesperados, na tentativa vã de se segurar em um apoio que não existia... E ele assistia aquilo sem poder reagir, sem conseguir ajudá-los, a única coisa que fazia era escrever, escrever mecanicamente, descrevendo cada grito, miado, o desespero nos olhos amarelos do gato, as lágrimas que abundavam no rosto da mulher...
Acordou no outro dia – no horário que comunalmente despertava – não se sentindo muito bem, a noite habitada de gatos e mulheres permanecia em sua memória, em um relance olhou para a escrivaninha e se certificou que o manuscrito estava lá. Não o pegou, levantou-se e saiu para a sua caminhada matinal. Logo à rua ouviu o burburinho dos que ainda comentavam o ocorrido. Assim descobriu que o gato era um persa e a mulher se chamava Rachel, e que a polícia ainda investigava à procura de explicações para o mistério que cercava as mortes do animal e dona.
Continuou a caminhar, “o dia será belo hoje”, pensou com um sorriso de esperança. Neste dia suas pernas o levaram a lugares nunca antes percorridos, caminhou por ruas estranhas, passou por muitas casas, jardins, cães, gatos e mulheres... Voltou para casa e sentou-se à escrivaninha para encarar a sua obra. Ainda não havia escrito um título, então olhou para fora, para o mesmo local que o inspirara e com uma grafia hesitante escreveu: “Felinos e Mulheres Despencam Igualmente”. Levantou-se para tomar um café e decidiu procurar um editor o quanto breve...
Nesta mesma noite um outro corpo despencou. Como já haviam despencado o do gato persa e de sua dona Rachel, o corpo de nosso jovem escritor também despencara... Caiu belo, como quem desliza ao som de um velho samba canção. Lá embaixo na calçada as pessoas se reuniram mais uma vez, a mídia ligou os seus refletores e a polícia encobriu o inerte corpo com um cinematográfico saco preto. Em algum apartamento popular por ali, com suas incontáveis janelas e vitrôs basculantes alguém ouvia... “E o rio de asfalto e gente/ Entorna pelas ladeiras/ Entope o meio-fio/ Esquina mais de um milhão/ Quero ver então a gente, gente/ Gente, gente, gente, gente, gente...”

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