24 dezembro 2008

O Rei está Nu




Recentemente assisti uma entrevista no Conexão Roberto D’Avila com o poeta, escritor Affonso Romano de Sant’Anna. Gosto do Affonso porque ele tem noção do que fala, e principalmente do que escreve. Nessa referida entrevista ela se concentrou naquela que eu acho a sua mais interessante faceta: a de ensaísta com ênfase em Arte. Interessantíssimo as conclusões dele sobre a Arte Contemporânea, ou seja de uma arte em crise de identidade. Opinião que vem muito a calhar com as minhas próprias.


Há alguns anos me interesso por essa discussão acerca da História da Arte, e muitas vezes meu caro amigo Insano e eu debatemos sobre a validade ou os conceitos que definem o que é Arte. Oras, sempre fui daqueles (assim como Affonso) que acham Duchamp uma fraude das mais toscas do século XX. Como creditar a ele a alcunha de artista ou aventar a sua importância no que concerne a arte conceitual, quando na realidade ele é nada além de um monólito da falta de expressividade artística?! É absurdo cair no axioma falacioso da anti-arte, do tudo pode ser um objeto artístico. Infelizmente é sob esse paradigma que vivemos (vide os absurdos em matéria de ‘instalações’ que povoam as bienais pelo mundo), decadentismo puro...


Até acho instigante pensarmos em algumas das propostas que nos faz este tipo de ‘artista’, por em xeque a validade de uma obra de arte, as questões estéticas que a norteiam são sem dúvida uma problemática recorrente para aqueles que pensam ou se sentem atraídos por debates da história do pensamento. Enfim, uma discussão mais filosófica e sociológica do que artística, digamos de forma simplista. Portanto, vamos “desconstruir Duchamp” e mostrar por A mais B se necessário for que “o Rei está nu”.


Entrevista do Affonso Romano de Sant'Anna concedida ao G1: http://colunas.g1.com.br/maquinadeescrever/2008/10/15/entrevista-affonso-romano-de-santanna/


Jessye Norman

Nesta véspera de Natal nada com ouvir uma bela interpretação...


04 dezembro 2008

Tempos


Tempo. É chegado o tempo de viver, me dizem. É chegado o tempo de morrer, eu digo a mim mesmo. Mas o Tempo é inexorável e pouco conciliador sabemos. Na verdade, cruel em suas artimanhas não permite que vivamos e nem mesmo deixamos de viver. Seja essência, ouve-se o nobilíssimo Ser murmurar, quase inaudível, embora sempre presente... Freqüência é o determinante. Freqüente a vida hoje, freqüentará a morte amanhã. E o não existir? Quando lhe será dado o tempo de ser. Nunca. Enfático e embrutecido assevera o pai da deterioração. Não haverá um tempo da não-existência, como não existirá o tempo onde o Tempo seja apenas mais um tempo. Aos nobres de linhagem, de origens inquestionáveis como o é o Tempo, nada será retirado. Neste âmbito não houve revolução burguesa. Trata-se aqui de uma aristocracia absoluta – sanguinária, inescrupulosa e demasiadamente vã, tanto quanto as daqueles que se diziam portentosos de sangue azul. No entanto, é uma elite inquestionável. E digno de pena aquele que tentar se rebelar contra tão fortes laços feudais... Seja vassalo do Senhor seu Tempo. Dele é a sua existência. É ele o seu Juiz Inquisidor. Será ele, por fim, a te embalar nos tempos vindouros.

03 dezembro 2008

"Pois a maldade se pratica sem testemunhas, mas a prática da bondade as exige. O catolicismo, por exemplo: o sacramento da confissão é secreto, mas a virtude cristã da caridade necessita de palco – oculto sob o nome do bom exemplo. O hábito católico do outdoor das boas ações se transporta para os programas de auditório: as lágrimas fluem melhor em horário nobre. O futuro será fecundo para todos esses atores do afeto triste, pois, alegrem-se, mais catástrofes virão. Que o diga o aquecimento global. Os pandas ainda terão chance de se condoer muitas e muitas vezes. Bom para eles – e para nós, que apreciamos o teatro do grotesco. Ruim para os pobres, claro, que continuarão morando em áreas de risco – tudo para nossa diversão, óbvio, pois, afinal de contas, quem se importa de verdade com os pobres? Eu que não. Arrisco dizer que ninguém."

A Lontra Niilista (Tadeu Sarmento)

O Ser e o Nada


Estávamos a sós naquela imensa cama com dossel herdada de meus avós maternos, desproporcional ao pequeno e mal ventilado apartamento. Distraidamente observava os parcos móveis espalhados aleatoriamente. Depositados na espessa camada de poeira que encobria o piso, os meus velhos livros.
Ainda sonolenta levantei-me e caminhei até a pilha de livros a procura do surrado exemplar do Ser e o Nada. (Sartre é o único autor que consegue me retirar do poço fundo que é a lassidão do amanhecer). Após alguns minutos de minuciosa investigação, encontrei-o e retornei para a cama. Abri o livro e comecei a lê-lo sussurrando cada palavra como se fossem receitas mágicas, mantras, orações, ou qualquer coisa do tipo que nos leva a pretensa transcendência, ao êxtase. Ao meu lado, ainda dormindo tranqüilo, ele respirou profundamente. Interrompi a leitura, olhei-o com amor perscrutando cada centímetro daquele corpo que há algumas horas parecia estar em perfeita sintonia com o meu... Fechei o livro. Beijei aqueles olhos que, eu sabia, só desejavam a mim, mas que agora não viam nada além da densa escuridão das pálpebras que os enceravam. Levantei-me, e felinamente caminhei até a cozinha. Abri a gaveta do armário, e retirei a imensa faca que raramente era utilizada. Acariciei-a como quem acaricia o falo do homem desejado. Sentindo-me invadida pelo prazer e pelo medo voltei à cama, e sem nenhuma hesitação desferi naquele torso musculoso um único e profundo golpe. Ele nem acordou. Um único sinal de espasmo perceptível: as pernas se agitaram violentamente. Feliz pelo meu feito e sentindo-me saciada, joguei aquele simulacro de consciência no chão, peguei o Sartre e recomecei a ler, convicta de ser o humano mais incrível do mundo... Eu deixara de simplesmente existir para incomensuravelmente ser.

O sol já estava alto quando acabei o livro, retirei a colcha da cama e acobertei o corpo que insistia em dormir. Insistia em me ignorar... Olhando para o relógio digital de mostrador vermelho, certifiquei-me que já estava quase na hora de sair. Tomei um banho rápido, troquei de roupa e corri até a cozinha onde peguei uma maçã. Retornei ao quarto e despedi-me com um longo beijo no meu inerte namorado. Apanhei a bolsa e sai para a faculdade com a certeza de que desta vez quando eu retornasse a noite o meu homem estaria me esperando ansiosamente para podermos jantar.

Tranquei a porta e lancei-me escada abaixo com o augúrio de que perderia a primeira aula do dia: Semiótica.