16 janeiro 2009

Nostálgico

Me lembro que no ano passado neste mesmo período do ano, dois grandes amigos e eu vivíamos em uma constante ebulição criativa, um orgasmo permanente de idéias (esse acento não é adequado segundo a reforma ortográfica, mas...). Hoje me lembro com saudades (sentimento costumeiro e de certa forma imanente a mim) daqueles dias, ou melhor das noites de infindáveis devaneios alcoólicos, dos debates intensos a respeito de literatura e cinema, de Dostô, Sade e Tarkovsky, dos videozinhos do Gerald Tomas... Foi um tempo de Homens Elefantes aquele... Nostalgia. Mas como dizem por aí, a vida continua, e após uma temporada infecunda (de pouca ou quase nenhuma produção textual) um de nós, velhos esquizóides carmelitanos, voltou a produzir.

O conto que postarei logo abaixo tem um grande significado para mim. Ele celebrará, de certa forma, o (re) encontro dos solitários Lobos da Estepe na noite de hoje.



Terapia Ocupacional para um Suicida


O mundo é uma trepada. Vivemos em um organismo vivo que pode a qualquer momento nos expelir com força pra cair no chão e depois secar. Todo tipo de lixo já foi dito sobre o que é certo e errado, sobre o que devemos fazer pra nos sentirmos felizes. O pior é que tudo foi vomitado com propriedade pelos chamados entendidos. Mas sejamos francos e admitamos que não se pode afirmar nada sobre porra nenhuma. O que vai acontecer no futuro? Foda-se!

Sou um marginal muito sofisticado, de cabeça febril, do tipo que acorda todos os dias e se questiona se vale a pena levantar pra viver. Um cara esquisito, escravo de suas neuroses infindáveis. Tenho em mim uma força monumental, destruidora, e essa força vai um dia me levar a cometer atos um tanto pecaminosos. De marginal a delinqüente, um bandido perseguido, assassino e déspota. Vou destruir tudo e aqueles que sobrarem vão ser abatidos ali mesmo. Quero me dedicar ao exercício do poder, ser herói pra mim mesmo e ninguém mais.

É então que me corto sem pudor, uso navalha bem afiada pra não deixar dúvida. Daí tomo centenas de pílulas pra não escapar. Deito sangrando, boca aberta respirando ofegante. Não digo nada, só espero. Faço o que quiser com o que é meu. Esse corpo já era. Quero ver quem vai me impedir. Mas aí eu apago e sou salvo pelos desgraçados que me levam pra droga de um hospital, onde fico sedado vários dias, delirante. Sonho as coisas mais escabrosas, parece que estou já no inferno.

A cama sangra. Meu corpo ainda quente sente a presença de toda a ralé que tenta acudir, consolar, sei lá o quê. Sou observado e fazem comentários piedosos a meu respeito. Ali sou o homem elefante, a besta de circo que todos até pagariam pra ver. Enfermeiros, médicos, visitantes, curiosos, mulheres voluptuosas, pederastas, crianças enfermas, cadáveres, todos passam. Parece que se deliciam.

Ali sou um cristo, a própria imagem da morte. Meus lábios pronunciam coisas sem sentido algum. Quero me libertar de todo o martírio e me erguer. Ser homem de verdade, casa e filhos, mulher e amante. Ainda estou atado, sangrando muito. Meus olhos por vezes se abrem pra ver o espetáculo. Vou ter um infarto. Quanta merda literal ou não perto de mim!

Toco o meu sexo, sentindo certo tesão. Olho lascivo pras enfermeiras ali, que de certa forma retribuem o olhar, voluptuosas. Tenho uma vontade imensa de foder agora, é como se a volta dos mortos tivesse recriado o meu pênis. Um membro permanentemente ereto, acusador em sua imponência, uma metralhadora de sêmen ambulante, pronta para o ataque. Vou estuprar alguém assim que...

Pros infernos com todos! Deixem-me em paz, seus filhos da puta! Por que não posso simplesmente existir sem ser notado? Não estou em nenhuma vitrine para ser avaliado dessa forma. Vocês não podem me comprar, tenho os meus princípios, a minha dignidade, embora um tanto prostituída. Já não tenho alma e sou filho do nada.

Soco a enfermeira na boca e a jogo no chão. Chuto sua cabecinha de boqueteira até sangrar e eu me excitar demais. A outra só olha horrorizada e não diz nada, decerto com medo de apanhar também. Largo a sua puta amiga no chão e apalpo os seus seios fartos com vigor, até doer. Ela grita e eu cuspo na cara dela. Dou uma risada e saio.

Tenho sangue nas mãos e barba na cara. Sou um homem. Sou aquele pelo qual todos sempre esperaram. Sei de coisas que todos ignoram e assim preferem continuar. Trago a peste, a melancolia, o choque. Destruo o que quiser a qualquer momento e saio ileso. A desgraça permeia o meu ser.

Saio do hospital e a vejo. Ela me olha pasma. Estranha o meu aspecto doentio. O que quer de mim essa mulher? Já não basta ter roubado a minha vida, desestruturado a minha psicose habitual? Lembro-me quando ela surgiu, e tão rápido se foi. Seus lábios parecem pronunciar algo de terrível, que de fato não consigo compreender. Estou me lixando pro que ela diz, aposto que é banalidade. Mas ela chora. Eu cada vez mais indiferente e cruel. Adeus.

Preciso de uma ocupação. Uma terapia viria a calhar. E é assim que caminho, sempre em frente. Todo o passado agora é lixo.

Que belas as meninas que passam. Estudantes. Carregam seus objetos escolares e tagarelam. Surjo como um bicho e elas se espantam. Corro atrás tipo um leão faminto. Elas acabam se dispersando e eu ainda louco. Uma fica pra trás. Já era.

Sento-me num banco de jardim, satisfeito. Minha auto-estima está bem melhor. Sou capaz de dominar uma mulher facilmente. Esses seres não têm qualquer poder sobre mim, não mais. Não podem me consumir, sou só eu sem ninguém. Onde estou, sou inatingível. Tenho uma aura indestrutível que só sabe massacrar. É um escudo e um estado.

Na verdade a minha vida sempre foi miséria. Nunca senti que estava vivo, e agora ainda menos. Sou ridículo e desprezível. Minha alma grita solitária e morre aos poucos. Desamparado em uma terra desconhecida, isso sou eu. Meu coração funciona como que por puro instinto. Estou em um caixão fechado, sempre pronto para ser cremado. Aguardo as chamas que me consumirão e derreterão o meu ser decadente. Fecho os olhos e tento imaginar algo menos trágico, quando me sentir digno de viver. Quando puder viver, ser e sentir.

Caminho febril, tropeço às vezes. Não caio por teimosia. Pertenço ao subsolo, minha morada acolhedora. Não há lugar pra mim onde possa respirar. Quero um exorcismo, urrar alucinado para os céus e voar. Vou começar a correr sem jamais me cansar. Destruirei todas as fronteiras, serei perpétuo.

Quanta morte, agonia e dor. O desespero incurável. Infecto a todos com a minha doença, uso seringa e faca. Arranco as entranhas daqueles que não querem me dar passagem e também dos que me abandonam continuamente. Miserável em meu âmago, nulo em minha angústia.

Vou matando e errando. Estripo os trabalhadores e decapito os animais vadios. Corto pescoços de senhoras de meia-idade. Derrubo latas de lixo e quebro vidros. Ateio fogo aos lares. Derreto cruzes só com o olhar. As crianças correm chorando e vão buscar consolo nos braços de suas mães. Os pais olham indiferentes, mas depois se irritam com essa demonstração de fraqueza de seus varões. Os padres fazem o sinal-da-cruz mecanicamente e em seguida adentram as suas moradas suntuosas. Gestantes parecem ansiar pelo fim, não querem propagar a desdita.

Sou eu o agente do apocalipse. Todos os infelizes podem vir a mim que serão atendidos. Tenho a felicidade etérea para distribuir em infinitas proporções. Liberto a todos e a mim. O mundo é ódio, é busca por territórios. Tornarei a Terra um local menos inóspito.

Entro em uma igreja e me sento. Vejo Jesus lá em cima. Ele também fui eu que matei. Tenho ânsias de chorar, mas me contenho. Sei que não tem volta para esse crime. Minha consciência é maior do que eu mesmo. É minha esposa e filha, meu sangue e espírito. Entrego meu corpo ao abismo e deixo os vermes se fartarem. Não tenho nada. Sou o nada. Subo no altar e abro os braços. Ensangüentado e cheio de piedade. Não consigo conter a tristeza por saber que o meu pai é feito de gesso. Toda a esperança está dizimada.

Não suporto mais viver em um mundo de animalidade pura, onde o dinheiro é deus. Sem afeto, sem amor. O que conta são as coisas superficiais, e a essência do indivíduo é anulada. Quero incendiar o mundo com o meu ardor, essa paixão incontida que torna tudo possível. Tenho ânsias de vivenciar o âmago de toda a vida, sem restrições, estando permanentemente em êxtase pelo simples fato de ser. Quero viver, mesmo estando morto. Desejo readquirir essa vitalidade, essa energia intensa da qual fui originalmente dotado. Talvez seja tarde demais, pois a minha corrupção é hedionda, minha sobrevivência o meu martírio. Que a terapia continue.

Passo por uma escola e rio. Vejo todos escandalizados comigo. Aproximo-me e cuspo. Urino em livros, corto o meu rosto com estiletes. Estou já só. Atiro carteiras para fora da janela e acerto muitos na cabeça. Desnudo-me e deito. Evacuo em cima da mesa do professor. No quadro-negro, a mensagem que deixo é bem clara: "Todos contra mim".

Na rua continuo a minha saga de destruição. Quebro vidros de carros e os incendeio. Agrido os transeuntes violentamente e lambo o sangue em minhas mãos. Pareço uma fera lasciva e insaciável. Sou a personificação do caos, um demônio de feições humanas que ninguém pode conter. Piromaníaco, repulsivo e louco. Meu espetáculo é o mais apoteótico de todos os tempos. Agora sim canalizo a minha energia para as coisas certas, para o que sempre quis. Minha respiração tem no momento um sentido, mantém-me vivo para o que de fato tenho de fazer. É a minha natureza em sua plenitude. Esse sou eu.

Caminho contente para o meu destino. Retornarei para o lugar de onde jamais deveria ter saído. Entro no cemitério para abraçar os meus entes queridos. Violo a sepultura de minha família com avidez. Ali me deito ao lado de meus antepassados e sinto-me finalmente em paz. Sei que não serei mais incomodado e que não terei mais pensamentos perturbadores. Não matarei os meus sentimentos nobres nem os desperdiçarei com pessoas indignas. Não sofrerei mais.

Fecho os olhos.

(Flávio Monteiro)

3 comentários:

Henrique Hemidio disse...

Não li inteiro pq é muito grande e estou por demais ocupado nesse momento, mas por acaso isso é um alter-ego alterado?

Jean Carllo disse...

Saudações Henrique!
Há indícios de alter-ego, mas vai além... Este conto foi livremente inspirado em uma situação vivenciada e descrita pelo irmão dele. Até.

InSaNo® disse...

"Penocart"...
Fiquei sem palavras ao ler esse texto. Quem dera eu fosse o autor, estaria extremamente satisfeito. Jean, você tem grandes amigos, dê os parabéns ao Flávio por mim e aproveite e faça muito dessas noites de debates, bebidas, filmes e tudo mais... Continuem nos contemplando com essas inebriantes palavras. Quem sabe assim eu possa me sentir um pouco como parte dessas loucuras.